- Empresa familiar como transmissão de legado.
Por natureza, nas empresas familiares coexistem lógicas institucionais concorrentes e, por vezes, contrastantes: (i) a empresarial, focada na maximização do lucro e no crescimento econômico segundo princípios capitalistas; e (ii) a familiar, baseada em tradições e valores não financeiros, muitas vezes com uma abordagem emocional. Na tomada de decisão, deve-se, pois, gerenciar esses interesses distintos.
A preservação do bem-estar socioemocional tende a ser uma preocupação central para a união familiar, representando a própria proteção da identidade e do senso de pertencimento de seus integrantes (Hedberg & Luchak, 2018). Por essa razão, as empresas familiares estão frequentemente dispostas a assumir riscos maiores em termos de desempenho para segurança de sua riqueza socioemocional (Calabro, Minichilli, Amore & Brogi, 2018). Suas decisões são, muitas vezes, guiadas por critérios subjetivos, considerando relações afetivas continuadas no tempo.
Não à toa, a conservação do legado tende a ser um dos objetivos perseguido pelas famílias através de seus negócios, conforme afirmam Hammond, Pearson & Holt (2016). Segundo os autores, engloba-se, nesse contexto, atributos (i) biológicos, como linhagem sanguínea, nomes ou genes familiares; (ii) materiais, como terra, dinheiro, patentes e artefatos sentimentais passados de geração para outra; e (iii) emocionais, consistindo nos canais e mensagens que são empregados para transferir o conjunto de valores mantidos pela família, bem como suas atitudes e crenças. O presente artigo foca, em específico, no contexto do legado biológico ao explorar as complexidades inerentes à escolha de uma nova liderança na empresa familiar.
- A sucessão e o legado biológico.
Hammond, Pearson & Holt (2016) afirmam que quanto maior a concentração de poder da família na empresa, mais provável se torna a escolha de um sucessor com grau de parentesco. Sob a ótica do legado biológico, a transferência entre familiares do poder de liderança assume um significado específico, o que explica sua valorização: muitas vezes, a família encara a continuidade da empresa como a continuidade da sua própria linhagem familiar (Hammond, Pearson & Holt, 2016).
Contudo, a escolha da nova liderança, se embasada apenas no parentesco, nem sempre satisfaz as necessidades empresariais e otimiza o desempenho do negócio. Ahrens, Calabro, Huybrechts & Woywode (2019) destacam que a aptidão não é herdada do mesmo modo que os direitos de propriedade e de controle são. Em outras palavras, os familiares de um CEO não adquirem automaticamente aptidão para assumir o mesmo cargo e suas atribuições.
Nesse contexto, pode-se antever potencial conflito de interesses na tomada de decisão. A escolha de uma nova liderança pode ser influenciada pelo problema de agência do tipo II, no qual o sócio familiar utiliza seu poder de controle para favorecer sua família (Pinheiro & Yung, 2015). Aqui, a escolha do sucessor seria pautada por preferências pessoais e interesses não-financeiros (Ahrens et al., 2019). O nepotismo é uma tendência natural – ainda que superável – na tomada de decisão estratégica em uma empresa familiar, pois os indivíduos estão propensos a proteger o que entendem como família (Hammond, Pearson & Holt, 2016).
O desafio de escolha do sucessor se torna ainda maior se a empresa à baila for multifamiliar. Nesses casos, cada família pode ter preferência pela satisfação do interesse de sua própria família. Não se decidindo pelo compartilhamento da liderança, a expectativa de uma das famílias pode ser frustrada, alimentado rivalidades improdutivas e potencialmente prejudiciais à sinergia entre as famílias.
Mesmo dentro de uma só família, esse processo nem sempre é simples. Normas sociais e culturais podem impactar a escolha da nova liderança. Calabro et al. (2015) indicam que a seleção do sucessor familiar costuma privilegiar o filho primogênito da família – sobretudo nos casos em que há maior preocupação com a riqueza socioemocional e o desempenho da empresa pré-sucessão está abaixo do que se considera desejável. Nos casos em que essa tendência é seguida de maneira acrítica, sem considerar a aptidão daquele que assumirá novas responsabilidades, o desempenho pós-sucessão tende a ser impactado negativamente.
O estudo de Calabro et al. (2015) mostra, ainda, que a nomeação do segundo irmão ou o irmão subsequente tem uma relação positiva e significativo efeito na rentabilidade da empresa pós-sucessão, particularmente quando a empresa está em sua segunda geração ou posterior. Ainda nesse contexto, Calabro et al. (2015) demostram que as empresas operadas por herdeiros não consanguíneos superam aquelas operadas por herdeiros naturais. O que os pesquisadores afirmam é que a ordem de nascimento não impacta sua aptidão para assumir a liderança. Indicam, contudo, que a persecução cega de normas sociais podem impactar negativamente a rentabilidade da empresa.
Além disso, em sociedades patriarcais, muitas vezes, mulheres não são nem mesmo consideradas potenciais sucessoras ou, quando são, enfrentam dificuldades adicionais e discriminatórias na assunção de novas atribuições (Farah, Elias, De Clercy & Rowe 2020; Maseda, Iturralde, Cooper & Aparicio, 2021). Essa arbitrariedade pode gerar o desperdício de profissionais interessados e capacitados para assumir a liderança da empresa.
- A escolha deliberada.
A escolha do sucessor é um ponto crítico para a continuidade da empresa familiar e, por vezes, para a harmonia familiar. Uma decisão pouco deliberada pode ter efeitos prejudiciais ao desempenho da empresa familiar e à confiabilidade da empresa perante seus stakeholders (Ahrens et al., 2019). A deliberação clara e objetiva, nesse sentido, contribui para a redução de atritos durante a sucessão (Rivolta, 2018).
Idealmente, a nova liderança da empresa deve assumir esse posto em razão de sua aptidão, sendo capaz de resistir e vencer uma disputa sucessória contra concorrentes internos e externos à empresa (Calabro et al., 2015). Pode-se optar pela permissão da competição de candidatos interessados na assunção das novas atribuições, incluindo, irrestritamente, potenciais sucessores familiares ou não familiares. Minichilli, Nordqvist, Corbetta & Amore (2014) sugerem, além disso, que se estabeleça critérios objetivos de avaliação desses candidatos.
Contudo, se o pertencimento à família for visto como essencial para a família na passagem de bastão, é aconselhável que se invista na formação de um sucessor que estaria apto a vencer de potenciais concorrentes caso fosse testado (Calabro et al., 2015). Nessa formação, a educação deve ser focada, incluindo a transferência de conhecimentos familiares tácitos, a frequência em uma universidade de prestígio e a realização de cursos específicos sobre sucessão de gestão (Calabro et al., 2015). Além disso, Istipliler, Ahrens, Bort & Isaak (2023) recomendam que o familiar adquira experiências externas ao negócio antes de assumir a posição de sucessor. Seriam mitigados, assim, potenciais vieses cognitivos incorporados a partir do excesso de exposição às práticas da antiga liderança (Ahrens et al., 2019). No mais, o sucessor deve adquirir habilidades comportamentais e de relacionamento interpessoal, como, por exemplo, a administração do ego pessoal e a abertura para a escuta de novas ideias sem pré-julgamento (McEnany & Strutton, 2015).
Portanto, da sucessão em empresas familiares podem emergir conflitos de interesse entre lógicas empresariais e a familiares. A preferência cega por sucessores dentro da própria família, baseadas na preservação do legado biológico e de valores não financeiros, pode impactar diretamente o desempenho da empresa. Essa tendência de escolha do sucessor pode favorecer membros da família, mesmo que não sejam os mais qualificados. Para mitigar esses desafios, deve-se deliberar e desenvolver um planejamento de sucessão transparentes e baseados em critérios objetivos, promovendo a preparação adequada para liderança. Assim, as empresas familiares podem garantir a continuidade e sustentabilidade de seu legado empresarial ao longo das gerações.
REFERÊNCIAS:
Ahrens, Calabro, Huybrechts & Woywode (2019). The enigma of the family successor-firm performance relationship: A methodological reflection and reconciliation attempt. Entrepreneurship Theory and Practice.
Calabro, Minichilli, Amore & Brogi (2018). The courage to choose! Primogeniture and leadership succession in family firms. Strategic Management Journal.
Farah, Elias, De Clercy & Rowe (2020). Leadership succession in different types of organizations: What business and political successions may learn from each other. Leadership Quarterly.
Hammond, Pearson & Holt (2016). The quagmire of legacy in family firms: Definition and implications of family and family firm legacy orientations. Entrepreneurship Theory and Practice.
Hedberg & Luchak. Founder attachment style and its effects on socioemotional wealth objectives and HR system design. Human Resource Management Review.
Istipliler, Ahrens, Bort & Isaak (2023). Is exposure to the family firm always good for the next CEO? How successor pre-succession firm experience affects post-succession performance in family firms. Journal of Business Research.
Maseda, Iturralde, Cooper & Aparicio (2022). Mapping women’s involvement in family firms: A review based on bibliographic coupling analysis. International Journal of Management Reviews.
McEnany & Strutton. Leading the (r)evolution: Succession and leadership rules for re-entrepreneurs. Business Horizons.
Minichilli, Nordqvist, Corbetta & Amore (2014). CEO succession mechanisms, organizational context, and performance: A socio-emotional wealth perspective on family-controlled firms. Journal of Management Studies.
Pinheiro & Yung. CEOs in family firms: Does junior know what he’s doing?. Journal of Corporate Finance.
Rivolta. Worth the wait? Delay in CEO succession after unplanned CEO departures. Journal of Corporate Finance.
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