Neste século vivenciamos três grandes crises: a de 2001 originada pelas fraudes da Enron; a de 2008 causada pelo estouro da bolha imobiliária e quebra do Lehman Brothers e a de 2020, com a Covid-19, cada uma trazendo diferentes reflexos sobre a governança e o papel das lideranças nas empresas.
AS CRISES DE 2001 E 2008
A crise de 2001 reforçou a necessidade de um olhar mais atento a aspectos relacionados à transparência, conflitos de agência e insider trading, e evidenciou o mal que pode causar um conselho decorativo e passivo, bem como os malefícios que os sistemas distorcidos de remuneração de executivos, com foco no curto prazo, podem trazer para as empresas.
Com a crise de 2008, a gestão de riscos passou a ter maior atenção de conselheiros e executivos e voltou a realçar a necessidade de sistemas de remuneração que levem os executivos a ponderar seriamente sobre os resultados futuros de suas ações, não somente no desempenho de curto prazo.
A CRISE DE 2020
Nos últimos anos, vínhamos passando por uma revolução em tecnologias que impactavam as empresas ao mesmo tempo em que emergiam novas gerações, com novas culturas e comportamentos, em paralelo à pressão para a mudança cultural e quebra de paradigmas das gerações anteriores.
Aí, apareceu a Covid-19. Muitas empresas já buscavam alternativas para adaptar-se às evoluções tecnológicas e comportamentais, e a crise fez com que elas acelerassem esse processo para sobrevivência e adequação a essa dramática nova realidade. Muitos indivíduos das gerações não tecnológicas se empenharam em atualizar seus conhecimentos. O mundo foi colocado num fast forward (avanço rápido). Quais as consequências dessa combinação de fatores? Quais suas implicações para a governança corporativa e para o papel do conselho e dos líderes?
Neste ano, além de atualizar e lançar a 3ª edição do livro “Gestão de Pessoas não é com o RH” (cuja primeira edição foi resumida num artigo publicado pela HBR em fevereiro de 2011), finalizei a redação de um livro sobre governança corporativa, “Governança, gestão e sucessão – Passo a passo”, a ser lançado proximamente. Nesses livros são incorporadas análises aprofundadas dos reflexos dessas crises sobre a governança e o que se espera do papel do conselho e do líder pós pandemia.
O mundo não parou com a pandemia de 2020 e, quando este artigo foi escrito, ele estava em câmera lenta. Muita atenção foi dedicada para sobreviver à inércia provocada pela pandemia. Não sobreviver àquele “agora”, significaria que não existiria um “depois”. A Covid-19 trouxe reflexos diferentes das crises anteriores para o papel do conselho e do líder.
Durante essa crise, conselhos e líderes que estavam cuidando daquele “agora”, precisaram também colocar suas mentes a planejar o que fazer para o “depois”. Havia diferentes cenários a considerar e eles tiveram de ser ponderados no planejamento. Durante a crise houve a necessidade de maior proximidade de empresários e conselheiros com os executivos, num empenho conjunto como não havíamos visto anteriormente. Foi um bom aprendizado e esperamos que o conselho continue a trabalhar em maior sintonia com os líderes, cuidando, porém, para não invadir o campo das operações.
Por “conselhos”, refiro-me aos diferentes tipos: de administração, consultivo, de sócios, de família. Se não houver um conselho, refiro-me aos próprios donos. Quanto a “líderes”, refiro-me principalmente ao CEO, incluindo também os demais gestores.
A revolução tecnológica e as mudanças comportamentais trazidas pelas novas gerações que vinham ocorrendo, e aceleradas com a pandemia, começaram a motivar adequações nos papeis de conselhos e líderes. Eles continuarão a ter como objetivo principal o retorno sobre investimentos, no caso de empresas com fins lucrativos, ou a realização da “causa” em outras organizações, mas no “novo normal”, entre suas atribuições, algumas deverão ser enfatizadas:
- O capital humano;
- O futuro/planejamento;
- Gestão de risco;
- Inovação;
- Aprendizado/conhecimento.
O “NOVO CONSELHO”
O “novo conselho” deverá entender de forma mais ampla os negócios da empresa, seu meio ambiente, suas operações e sua gente, aproximando-se dos executivos, sem entrar no operacional, e estando mais cônscios de suas responsabilidades e seu dever de diligência. E muito focados nesses temas demandados pelo “novo normal”.
O capital humano
Maior atenção deverá ser dada ao capital humano. As novas gerações são uma realidade nas atividades operacionais, já assumindo posições de liderança. Suas expectativas, comportamentos e fatores motivacionais são diferentes das gerações anteriores; nem melhores, nem piores, apenas diferentes. “Gente” tem de estar mais presente nas agendas dos conselhos e os conselheiros devem entender com maior profundidade as características do pessoal, atuando proativamente na otimização da cadeia de valores de gestão de pessoas.
O futuro
Conselhos têm dedicado (ou gastado) mais tempo com o passado e o presente, do que com cenários que poderão ser vivenciados, estratégias e planos que poderão ser adotados para enfrentá-los. Esse paradigma terá de ser quebrado; os impactos que os acontecimentos trarão para as empresas terão de ser temas constantes nas agendas dos conselhos. O que tem sido aprendido até agora é importante, pois a história nos ensina muito, mas não podemos ficar presos a ela. Um comitê de estratégia poderá ser muito útil para ajudar a entender e analisar de forma continuada o que está acontecendo no mercado, avaliar possíveis cenários futuros, e apoiar na formulação do planejamento estratégico.
Gestão de risco
Gestão de risco deverá ter maior atenção. “Viver é muito perigoso, pois ninguém sai vivo dessa experiência”, dizia Riobaldo, personagem da obra “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa. Viver é, portanto, um risco. Uma empresa vive de suas atividades, que implicam riscos potenciais, e torna-se mandatório saber administrá-los — identificar, qualificar, preparar-se para enfrentá-los. O conselho tem papel fundamental nesse processo, considerando a gestão de risco, que é responsabilidade da administração.
Inovação
Inovação se refere a tudo aquilo que vem impactando, modernizando, mudando a vida das empresas e dos indivíduos, nas mais diferentes áreas, influenciadas pela transformação digital e pelas novas gerações com suas “novas” culturas e comportamentos. O conselheiro não terá de ser um especialista nesses temas ou em um deles em particular, mas terá de entender o que está sendo desenvolvido e introduzido no meio empresarial e na sociedade para poder entender propostas que venham a ser levadas ao conselho pelos executivos.
Aprendizado/conhecimento
Para poder debater e decidir sobre os novos desafios, conselheiros terão de manter-se atualizados sobre essa evolução tecnológica e cultural. Isso vai tirar uma grande quantidade de conselheiros de uma certa zona de conforto! Nesse sentido, o IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa tem prestado um serviço de grande valia a conselheiros com suas jornadas técnicas e a realização de eventos que abordam temas de interesse empresarial abrangendo esses novos desafios. O Instituto procura trazer novos aprendizados aos seus associados, enriquecendo-os com conhecimentos que vão muito além dos princípios da governança corporativa, pois entram no âmago da realidade empresarial.
O “NOVO CEO”
O CEO continuará sempre na liderança de suas equipes para cumprir com suas responsabilidades de atingir ou superar os objetivos traçados. O CEO é o responsável pelo desempenho da organização, com os seus desafios alinhados com os novos desafios do conselho.
Capital humano
No topo das prioridades do líder deverá estar sempre o capital humano, assegurando que a empresa cuide de sua gente como valor e não como custo, e a existência de uma cultura motivadora para a atração e o engajamento das pessoas. As rápidas mudanças que o mundo vivencia impactam os aspectos emocionais e comportamentais e passam a merecer mais atenção por parte do líder.
Esta crise colocou o colaborador mais próximo de sua família e em situações não vivenciadas anteriormente. Essas mudanças nos relacionamentos têm de ser melhor entendidas pelo líder, para que ele possa encontrar as melhores condições de motivação, produtividade e satisfação para suas equipes. Ele deverá conhecer melhor a vida de seus colaboradores, agora também em suas casas.
Colocar pessoas em home office foi imperativo e motivou várias empresas a pensar em adotá-lo permanentemente. Isso não é tão fácil assim, principalmente neste país com imensas disparidades socioeconômicas. Muitas pessoas não possuem ambientes físicos e relacionais que lhes permitam realizar o home office de forma continuada e produtiva. Mesmo alguém que habite em residência confortável pode encontrar dificuldades devido ao seu convívio com crianças, adultos carentes e outras pessoas. E aquelas pessoas que, além dessa convivência, ainda enfrentem condições habitacionais menos favoráveis?
O líder deve conhecer as condições de cada liderado para poder separar quem poderá ser mais produtivo no escritório ou no home office. Não basta “determinar” que o colaborador faça home office; é necessário saber se ele consegue executar suas funções com eficácia, sem estar sujeito a um burnout causado pelo seu ambiente doméstico.
O líder, com apoio do RH, deverá pesquisar as condições habitacionais e de convivência familiar de cada colaborador, tendo o cuidado de não invadir sua privacidade e a de sua família, para saber como posicionar suas equipes nos diferentes ambientes de trabalho. Uma pesquisa feita com todos da empresa ajudará no conhecimento das condições de cada colaborador, permitindo que ele se torne parte do processo.
O RH terá de ser muito mais atuante e proativo para apoiar o gestor e desenvolver critérios e ferramentas que possibilitem avaliar o desempenho dos colaboradores em home office ou no escritório e também acompanhar o desempenho de sua satisfação, para mantê-los motivados e fazê-los evoluir. Medir desempenho por meio de planilhas ou de horas dedicadas pode ser adequado para um robô, mas não para pessoas.
Essa forma de encarar o capital humano, ou o lado humano do capital, obrigará os verdadeiros líderes a estarem mais próximos a seu pessoal, mesmo daqueles que estiverem em home office. Neste novo mundo, as pessoas têm de sentir que existem, mesmo estando remotas.
Adicionalmente, colaboradores deverão ter maior empoderamento que lhes permita ter maior agilidade nas suas atividades, maior poder e assertividade de decisões. Para isso, será necessário identificar de forma mais aprofundada suas competências, saber o que delegar e capacitá-los para que saibam usar adequadamente esse empoderamento.
O futuro/planejamento
Apesar das urgências em tomadas de decisões e necessidades de rápidas adaptações provocadas pela Covid-19, o exercício do planejamento deverá ser intensificado para orientar gestores e suas equipes para onde ir e como chegar lá. Capital humano, inovação e aprendizado, temas que possuem relevância estratégica para o futuro sucesso do líder e da organização, terão de ser cada vez mais incorporados ao seu planejamento.
A crise levou muitas pessoas a pensarem antecipadamente antes de uma atividade e isso terá de ser enfatizado. O líder terá de exercer seu papel educador com muito mais intensidade, para motivar suas equipes a pensar antes de executar.
Inovação
Mais tempo deverá ser dedicado ao estímulo do espírito de inovação interno e ao acompanhamento das inovações de mercado. Internamente não se refere somente a produtos, mas também a processos de trabalho. Videoconferências, por exemplo, antes da pandemia, eram praticadas por poucas empresas; tornaram-se uma forma imperativa de trabalho e poderão tornar-se em uma alternativa de relacionamento na empresa e nos negócios. Muitas pessoas quebraram seus paradigmas e passaram a incorporar essa prática ao seu dia-a-dia.
No retorno à normalidade será necessário repensar as formas tradicionais de trabalho e de engajamento das pessoas. Novas formas de trabalho foram testadas não só nas rotinas de escritórios, mas em muitas profissões. As inovações tecnológicas, da burocracia dos escritórios a novos procedimentos na saúde e outros setores, obrigam o líder a se inovar e a estimular seus liderados a entender e praticar novas formas de trabalho.
Sobre o mercado, o líder deve criar em seus gestores a consciência de que eles não podem viver somente do que tradicionalmente fazem e estimulá-los a tomarem iniciativas para acompanhar e entender toda e qualquer inovação que possa trazer reflexos para a empresa. As novas gerações têm mais facilidade para acompanhar essas inovações, pois já nasceram digitais; as gerações mais antigas necessitarão de estímulo e de apoio para fazê-lo.
Aprendizado/conhecimento
Aqueles profissionais que quiserem contribuir de forma mais produtiva na perseguição dos objetivos sob sua responsabilidade e os da organização como um todo, deverão ampliar seus conhecimentos sobre temas que impactam seus resultados pessoais e sobre outros que impactam a empresa, relacionados com processos de gestão, tecnologias, mercado, meio ambiente e outros. O mundo que passamos a vivenciar fará com que o líder dedique mais tempo a ajudar suas equipes a identificar suas necessidades de aprendizado e estimulá-las a buscar esse conhecimento.
As empresas geralmente se dedicam a promover treinamentos em grupo e/ou padronizados, focados em temas de gestão/liderança, processos ou técnicas de trabalho. Esse tipo de treinamento continuará a ter espaço, mas o aprendizado terá também de ser individualizado. A tecnologia, tanto de treinamento quanto de monitoramento de performance individual, irá permitir que as organizações se atentem mais às necessidades específicas de cada colaborador e, com isso, possibilitar que invistam no aprendizado pessoal, levando cada colaborador a evoluir para atingir seu melhor potencial.
As mudanças em curso fazem com que as organizações encontrem formas de entender e se adaptar de forma contínua e rápida a essas mudanças. As realidades emergentes sugerem que as pessoas possam ter melhor aproveitamento e, portanto, mais desenvolvimento, com treinamentos específicos às suas necessidades. O e-learning passa a ter um papel contributivo relevante neste processo.
Essas “novas” prioridades de conselhos e de líderes deverão persistir durante muito tempo, até que outras novidades ou uma nova crise surja, quando terão de ser revistas e atualizadas. A empresa é um organismo vivo, mutante. Seus responsáveis terão de mudar junto com ela. Conselho e líderes terão de interagir muito mais, apoiando-se mutuamente nos processos de aprendizado e de tomadas de decisões, cada um observando suas fronteiras de atuação.
Atenção especial deverá ser dada ao principal valor da organização: as pessoas. Elas estarão expostas a uma forma de trabalho diferente daquela à qual estavam acostumadas e isso trará expectativas sobre como deverão se comportar no trabalho e sobre seu futuro. Gestores terão de ser treinados para desenvolverem novas competências de liderança. Para isso, conselho e líderes terão de interagir proativamente e dedicar-se a promover um aprendizado ininterrupto e o desenvolvimento de habilidades em suas equipes para conduzir a organização nesse complexo processo de mudança. Olhando o curto prazo, mas sem perder de vista o longo prazo.
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