As tecnologias digitais não vão resolver sozinhas carências que vêm de outros tempos, em particular as lacunas na educação.
“Menino vai estudar! Ou quer trabalhar na roça?” Há tempos esta frase perdeu a graça. A sentença mais atual é: “Menino, menina (sim, há muitas mulheres liderando suas empresas no agro), se quer trabalhar na roça vai estudar, e muito!”
Mais do que um ligeiro jogo de palavras, esta é a nova realidade. É certo, atuar no meio rural deixou de ser um trabalho menos desejado em comparação a profissões urbanas. A nova geração de produtores rurais assume o comando num momento de exponencial evolução da tecnologia aplicada aos negócios do campo.
Duas perguntas nos instigam: em que estágio de maturidade empresarial o salto na tecnologia encontra as propriedades rurais no Brasil? O que mais, além da tecnologia, precisa ser modernizado? Na linha do passado/presente/ futuro, até há pouco tempo o fluxo dos jovens tinha uma direção só: sair do campo para estudar na cidade grande, assegurar a formação universitária e, na sequência, bons empregos em empresas multinacionais – carteira assinada, plano de carreira…
Aqueles que voltavam aos afazeres rurais da família o faziam por vocação ou necessidade, algumas vezes por forte pressão familiar, em busca de alguém que seguisse com os negócios. O foco dos proprietários rurais, naquele momento, era ganhar produtividade e eficiência.
Às gerações que nasceram com um Smartphone nas mãos, faço um convite para entender o que era então o campo. Um ambiente precário em recursos e tecnologia, de fogões a lenha — não para deixar a comida mais gostosa —, e comunicação extremamente restrita.
O rádiomador era o meio para falar com as fazendas. A luz elétrica era a gerador de óleo diesel, com hora para desligar; geladeiras a gás, água quente da serpentina dos fogões, estradas de chão intermináveis, acesso difícil (ou inexistente) a médicos, hospitais e escolas – este era o Brasil do interior, literalmente muito distante da vida e da realidade das cidades.
Nos negócios, pecuária extensiva, início do melhoramento genético, época de ouro dos invernistas, agricultura com níveis médios de produtividade, se tanto. Outras características desse tempo (muitas ainda vigentes): operações conduzidas com informalidade e lideranças personalistas, ciosas das tradições.
Era uma gestão com poucos instrumentos de planejamento e controle, que priorizava índices técnicos. A família empresária cuidava de sua forte relação afetiva com o ativo principal – a fazenda –, e tudo que esta representava na vida das pessoas. Lindas histórias de muitos, de vida e de empreendedorismo.
Se relembramos, de um lado, este passado, de outro temos as smart farms; modernos sistemas tecnológicos de informação e comunicação resultando no que vem sendo chamado de a Terceira Revolução Verde. Nossos avós jamais imaginariam que uma plantadeira regularia sozinha a quantidade de adubo que jogará num determinado ponto e informaria um banco de dados em tempo real.
Neste intervalo, encontramos uma mão de obra no campo que, em sua maioria, tem formação limitada. Muitos são analfabetos funcionais. Como registrarão dados indispensáveis de gestão financeira? Saberão monitorar sensores? Como contratar alguém que tem valores, boa índole e histórico profissional, mas não é capaz de fazer uma regra de três simples para calcular a diluição de um produto a ser aplicado?
São desafios cuja resposta parece simples, mas só dá resultados a longo prazo – a educação. Tantas lacunas deixam a nova geração com dúvidas sobre os novos tempos. Em pesquisa que realizamos com 31 jovens líderes e futuros líderes de empresas rurais de várias regiões do Brasil, com faturamento entre 50 milhões e 300 milhões de reais, 67,7% deles apontam que a tecnologia é muito importante, mas os ganhos ainda não são claros.
As resistências encontradas são recorrentes em processos de transição:
• 42% resistem com a clássica frase: “Aqui fazemos assim há muito tempo”.
• 38,7% preferem dizer: “É muito caro”.
O que precisaria vir antes da tecnologia digital?
Para 77,4% dos respondentes, políticas e processos; para 67,7%, gestão de pessoas; para 45,1%, gestão financeira; e para 35,4%, comunicação. Estes aspectos, juntos, representam grande e significativo gargalo nas empresas rurais brasileiras, na visão de seus futuros líderes.
Mais do que isso, eles parecem advertir que comprar equipamentos e sistemas modernos, quando ainda é preciso endereçar questões mais estruturais, pode ser um terrível tiro no pé. Na busca de soluções, podemos criar mais problemas. Incerteza e ambiguidade não são novidade para os produtores: sua indústria é a céu aberto e depende da boa vontade do que não pode ser controlado, como os humores de são Pedro.
Nestas condições, fica a dúvida de o quanto a chegada da tecnologia digital os forçará a quebrar paradigmas e resolver estas questões anteriores. Se antes eles costumavam tomar decisões intuitivas, agora é preciso análise de risco e de resultados; se as regras vinham da cabeça do dono, agora é preciso ter políticas e processos; se havia apenas um no comando, agora é preciso ter boa governança para gerar transparência, equidade e prestação de contas.
São muitas transições simultâneas, que geram evolução e trazem riscos. É preciso fazer a lição de casa – de tocador de negócios a empresário rural, da lucratividade à rentabilidade, do especialista a uma visão mais generalista e empresarial. A tecnologia digital não é a resposta para todos os problemas. Os jovens que chegam para assumir os negócios precisam estar conectados, mas principalmente atentos a competências que vão além de entender de fertilidade de solo ou genética animal.
Mais do que nunca, é preciso ser dono de uma forma sistêmica e completa. Acompanhar o antes, o dentro e o depois da porteira: a compra de insumos, a gestão financeira e de pessoas, como comercializar seu produto. Ter a capacidade de diagnosticar em que estágio está o negócio e agir de acordo, contornando habilmente as resistências e criando o contexto para as mudanças que chegam. Um bom e possível desafio.
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